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22 setembro 2006


O fazer-se da cultura dos fazedores d’A terra do pau-de-tinta


"Neste dia, a horas de véspera, houvemos vista de terra! Primeiramente dum grande monte, mui alto e redondo; e doutras serras mais baixas ao sul dele; e de terra chã, com grandes arvoredos: ao monte alto o capitão pôs nome – o Monte Pascoal e à Terra da Vera Cruz. (...) esta terra, Senhor, me parece que da ponta que mais contra o sul vimos até outra ponta que contra o norte vem, de que nós deste porto houvemos vista, será tamanha que haverá nela bem vinte ou vinte e cinco léguas por costa. (...) Pelo sertão nos pareceu, vista do mar, muito grande, porque, a estender olhos, não podíamos ver senão terra com arvoredos, que nos parecia muito longa."
Pero Vaz de Caminha (1500)




Ao que avistaram pois com grande espanto, traduzido nas palavras do cronista, deu-se nome provisório como encerraríamos este, depois, por sermos agraciados com outro, como brasileiros; qual seja, fazedores da Terra Brasilis, a terra do pau que se faz tinta. O sufixo eiro diz-nos daquele que faz, que constrói, que cria, etc., ao que juntaram brasil, nos remetendo àquele que faz o brasil, que constrói, que, enfim, cria o brasil.

Brasileiros para os portugueses eram aqueles marinheiros que vinham ter nestas paragens, alguma ocupação no sentido de construtores, "fazer o Brasil", como exploradores da madeira e de outras riquezas para o enriquecimento e a volta para Portugal. E desse termo se estendeu aos que aqui ficaram e até hoje permanece assim.

Ora, não era, com certeza, com bons olhos que nos chamavam por brasileiros; essa idéia foi recentemente construída – a da valorização inversa mesmo de termos jocosos e preconceituosos, como exemplo, o "descobrimento" tanto da América quanto do Brasil. E o que vemos é uma nova forma de se construir o que vem sendo experimentado desde há muito, a tentativa de feitura duma brasilidade, em boa medida não encarada anteriormente como positiva.

A construção ideológica de um sentimento de unidade em torno de uma nação, foi projetada política e intelectualmente sobretudo a partir da emancipação política do Brasil em 1822, depois de já ter sido sede do Reino Unido de Portugal; e um dos aspectos necessários a esta unidade, foi e é em grande medida a formação, conservação, recriação e transformação, enfim, a construção do processo sócio-cultural, onde em praticamente todos os povos são encontrados a preservação de seus estoques de informações vitais – elementos e dispositivos materiais e simbólicos da memória coletiva, dos mais ousados e diferentes registros, mitos, lendas e contos, construção épica, seus cantos, ritos e ritmos, saberes e imaginários e ainda suas mobilidades no decorrer do tempo – e o autoconhecimento. É muito comum que haja algo imposto militar e politicamente como no caso brasileiro, a fim de manter de forma forçada uma unidade até mesmo através de guerras e sufocamento de levantes populares e revoltas nas mais diferentes regiões da nação que se formava, em detrimento da espontaneidade e naturalidade com que se constróem tais idéias e sentimentos. Com grande êxito foi conseguida a manutenção da unidade territorial por estratégia da Coroa portuguesa, mesmo com o grande avanço das idéias liberais e emancipaciononistas de caráter republicano, a exemplo de colônias espanholas aqui na América Latina e principalmente da independência dos Estados Unidos da América, onde tamanha feita era símbolo do que poderia ser conseguido aqui.

Tanto no caso dos emancipacionistas quanto no caso dos absolutistas, lutar por essa unidade ideológica sentimental e induzida, era algo vital para lograr êxito em tamanha e ousada empreitada; e nesse caso, a dificuldade em torno de tais idéias era maior para os emancipacionistas que não contavam com o aparelho do Estado e nem com a adesão continuada e significativa da população, a começar pela diversidade étnica e cultural e, além de haver classes com diferentes projetos sociais, ainda havia a distribuição geográfica populacional de forma desigual e rarefeita no "País".

Em represália ao autoritarismo das políticas militares de manutenção e expansão territorial e o adestramento do "povo brasileiro" para o sentimento de nação, feito e idealizado sobretudo a partir de idéias estrangeiras, alienígenas, importadas da Europa, assistiu-se a uma verdadeira avalanche de idéias nacionalistas mas não como os governantes queriam por vias impositivas, e sim através do construir-se da nação partindo de nossos próprios olhos, uma nação com a cara do povo brasileiro, mesmo que de forma um bocado desajeitada e inocente, como no caso de alguns intelectuais nativos, mas que exaltavam sobremaneira o que sempre fora negado, qual seja, os modos, costumes, crenças, mitos e rituais religiosos, etc., reelaborados e criados justamente pelo contato e miscigenação dos diferentes povos.

Ao mero conjunto de suposições da superioridade portuguesa e européia presente nas elites brasileiras, apresenta-se de forma singular a tentativa de evidenciar um brasil negado, vilipendiado, até mesmo numa espécie de desdém, rebatendo todas as críticas inferiorizantes da participação e contribuição indígena e africana. No mais, "somos, por tudo isso, uma República Mestiça, étnica e culturalmente; não somos europeus nem ‘latino-americanos’; fomos tupinizados, africanizados, orientalizados e ocidentalizados. A síntese de tantas antíteses é o produto singular e original que é o Brasil".

Perante a intenção de minimamente mostrar esse outro brasil, o dos verdadeiros brasileiros, os reais construtores de si mesmos e desta Terra, boa parte da cultura letrada tupiniquim se enveredou em tão ditosa empresa, a fim de dar vez e voz ao povo oprimido e subjugado, mostrando a necessidade de reconhecimento de algo original, mesmo que resultante de mesclas variadas; numa espécie de metaculturalismo lexical, onde a linguagem tem um papel fundamental, usa-se dos elementos de nossa cultura, para poder entendê-la de forma mais abrangente e menos academicista.

O mais que se pode dizer da efetiva contribuição dos diversos autores, que mesmo antes do Movimento Modernista já figuravam nos cenários intelectuais e até mesmo populares, é que tiveram um grande papel em seu tempo, mas que sobretudo serviram de apoio e base e, quem sabe também da forma "de como não se deve analisar o Brasil e a cultura brasileira" aos intelectuais do movimento vanguardista da década de 1920, inaugurado na Semana de Arte Moderna em 22.

A construção, ou melhor, a evidenciação do "herói brasileiro sem nenhum caráter...", mostra como não se faz necessário encaixar e tentar adaptar o brasileiro aos moldes europeus, numa antropofagia cultural que nega em boa hora as políticas importadas dogmatizantes, na medida em que não há medida alguma a ser seguida, a ser copiada ou estabelecida ou ainda, imposta verticalmente. O que há de ser observado é o teor da liberdade de criação e reelaboração dos elementos constitutivos de nossa cultura, sem nenhum caráter obrigatório ou específico. E um dos campos que se desenvolveu tal agitação foi o da literatura, a língua como critério metalingüístico, para o engrandecimento de uma linguagem própria, na medida em que houve um forte entrelaçamento lingüístico-cultural pluriétnico e o conseqüente distanciamento do idioma da metrópole, onde esse tomou rumo desenfreado no momento em que aqueles dois grumetes fugiram da nau de Cabral para a aventura da "terra nova", simbolizando metonimicamente a ruptura.

Percorrendo não só o campo das Letras, mas também das leituras várias que fizeram do Brasil e do povo brasileiro, os intelectuais que mais se destacaram, como Mário de Andrade, Tarsila do Amaral, Manuel Bandeira, Monteiro Lobato, Carlos Drummond de Andrade, Fernando Sabino, Anita Malfati, Gilberto Freyre, Oswald de Andrade, etc., na defesa assídua desse projeto de valorização da cultura feita à nossa moda, não fizeram mais que escrever, pintar, cantar, enfim, interpretar e materializar o apreendido das manifestações populares em seus trabalhos – o que não deixa de ser significativo, pois o que se pretende fazer aqui, tal como eles quiseram, é mostrar o papel principal dos verdadeiros atores.

E não há como negar a contribuição de um grande leitor do Brasil, João Guimarães Rosa, em suas inúmeras obras, onde inaugura um novo olhar sobre a linguagem e os costumes sertanejos, revelando-nos uma visão muito aguçada de um outro Brasil, que não figurava até então nas análises já produzidas acerca da cultura brasileira. O linguajar do sertanejo não é negado em medida alguma, pelo contrário, é objeto de importância comparada à própria saga; desfazendo-se da obrigatoriedade da norma culta, Guimarães desenvolve o que há de mais real na fala daqueles que sempre tiveram papel secundário nas estórias e histórias vistas de cima, feitas por cima, para os que estão em cima, ou seja, sua verdadeira contribuição para a formação do Brasil.

A língua portuguesa, tal como aconteceu a outros aspectos de nossa cultura, foi amolecida pelos elementos lingüísticos africanos e indígenas; foi-lhe arrancada sua dureza fonética e lhe emprestada a criatividade dessa mestiçagem em recriar sons e idéias, surgindo daí a língua brasileira. Perpetuando assim movimentos de defesa dos nossos traços culturais de maneira sóbria, mesmo levando em consideração leis e medidas governamentais que sugerem obrigatoriedade e respeito às normas letradas, no caso da Língua Portuguesa em específico por ocasião da grande absorção induzida de estrangeirismos de proveniência sobretudo anglicista, ao que se deve responder não somente com um Rui Barbosa, mas com veemência e maior incentivo usando as genialidades de um Mário de Andrade e de um Guimarães Rosa.... A resistência mútua dos diferentes proporcionou algo tão magnífico que em nenhum lugar se tem tamanha diversidade de caráter em boa medida não-conflituoso e que se completa; a exemplo disso, nossa língua e a chamada cultura da festa. Nem é necessária a dedicação de um dervixe para entender a magnitude da recriação e lucidez do canto das belezas nordestinas nas vozes do povo, com grande mérito, traduzidas por Luiz Gonzaga em suas canções.

Neste sentido, o conjunto de transformações, elaborações e recriações do real apreendido constitui não só parte da vida do povo como mero espectador, mas como totalidade que se faz, que se constrói. É o povo se construindo justamente com as diferenças e particularidades, regionalidades e espacialidades, forjando o todo, criando seu próprio papel no desenrolar da peça.

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nômade, de qualquer jeito e em qualquer tempo...

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