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22 setembro 2006

Ódio triunfal da Paulicéia?
(impessão sobre São Paulo)

Não, não é. Mas também não vi ainda por qual’é ela qual’é coisa, mas me tenho achado numa encruzilhada literária de influências, onde não sei se assumo um tom do Pessoa ou se do Andrade, mas o fato é que me trazem bem a cólera e a acidez de ambos, sem me enroscar nas amarras do conceito de crônica, mas não fugindo da tentativa de imprimir um ritmo de deslumbramento pela ausência de parágrafos. Então, nada de estranho se leres logo em seguida uma conversa entre os dois e traduzida por mim, claro, com o empobrecimento já esperado. E o que me vem é...


"À dolorosa luz das grandes lâmpadas eléctricas da fábrica
Tenho febre e escrevo.
Escrevo rangendo os dentes, fera para a beleza disto,
Para a beleza disto totalmente desconhecida dos antigos.
Ó rodas, ó engrenagens, r-r-r-r-r-r-r eterno!
Forte espasmo retido dos maquinismos em fúria!
(...)"

e eu acabo aceitando o convite de ir à metrópole, sentir-me como se sente um colono em meio a Corte, deleitar-me com os progressos contidos nos esmerados centros tumultuados, a digestão bem feita do santo São Paulo, onde o mundo é o mundo, e é do tamanho disto, beleza incomparável, sucesso desmedido, e eu, desacreditado e deslumbrado num só, criando e recriando meus conceitos e preconceitos, reelaborando-os às vezes. Ah, quem me dera ser um eterno colono para sempre poder enclausurar-me no meio disto tudo! Comprar, vender, comer, olhar para cima e estar sempre a dizer indecências sobre a capacidade dos homens de construírem tudo aquilo e isto e aquilo e aquilo outro. Nossa! Como eu queria rolar por estes prédios acima, me atirar dentro dos rios imundos, destas lojas sofregadamente indubitáveis e criativas a estar sempre nos arrastando para o seu seio, maternal. Como gostaria de encher os meus dias de não querer mais deles se fosse para viver aqui! Oh, criatividade sem limites! Oh, viadutos, corre-mãos longuíssimos do tamanho do progresso, oh máquinas em fúria, fúria descontrolada das multidões na 25 de março, oh supremacia das máquinas sobre os homens! Pedestres atropelados, abalroamentos transitivos e intransitivos, intransitáveis, gente presente nos amontoados nos montes, montes de humanos rasgando suas dignidades por um pedaço de pão! Ah, como eu queria andar sem medo pendurado em um vagão do progresso, o calor das estações do metrô, andar férreo, subterrâneas, soterradas e lânguidas, pobres e contidas esperanças dos humanos amontoados, crianças chorando, também sendo adultas e adúlteras fora do tempo, e não por opção! Ah como seria bom ser vergastado por um pichador numa noite de ação de "graças a Deus tenho aqui um pedaço de rocambole meio sujo que tirei desta lata!" Não aceito criares em mim conforto algum! Necessito das chaminés das fábricas, dos automóveis, das prostitutas, dos vendedores ambulantes, "na minha mão é mais barato!", ah, como eu queria ter muitos dinheiros, dos mais variados, para comprar de todos os camelôs todas as suas mercadorias, seus corações, suas mentes, como fazem os capitalistas, só que para poder ver em seus olhos, alguns apenas com um, outros nenhum, mas para sentir seu crepitar de alegria de que cumpriu a sua missão! Tomar ônibus errados para sentir o calor humano e sujo e também fétido, pois é humano e afinal tem alma lá dentro! Ser espremido em um canto, jogado para outro com as derrapadas nos pares e nas curvas, ah ser esmagado contra o vidro e ser xingado por um brutamontes prestes a me socar, mas tudo bem! Afinal está cansado! Que prazer em ver as inúmeras filas, brigas, telefones públicos sendo socados, depredados, frente aos progressismos dos telefones móveis! Ah, ouvir os mais belos assassinatos da última flor da Láscio, inculta e bela! Insultos à Língua inglesa, como soa bonito - e eu acho isto belo! – ser-serv na hora e na boca da fome, cellular para falação à distância, de maneira móvel, nobreique por bateria de segurança, pêiper por documento, – substituição do nosso idioma, adoro as correrias, panfletagem, cartazes, bueiros de cheiro horrível, bancas de jornal que ninguém lê; ainda tem os desempregados, os balconistas atrás daqueles vidros sujos; maltrapilhos, mendigos, esmoleiros, garis, lixeiros e lixeiras abarrotadas, mas também muito lixo espalhado nas calçadas remendadas que quase não se consegue andar! Portas de vidro fumê, e santas a aparecerem por todas as janelas, numa espécie de romaria de pecados em não adorá-las, ah, vossas senhoras dos vidros fumês! Incêndios nas favelas, ligações elétricas clandestinas, lâmpadas sem rima, mas a vapor de mercúrio e tungstênio, branquinhas, reluzentes. Ah, como é belo ver adesivos de oferta de serviços ‘amorosos’ pregados nos telefones da Paulista, táxis caríssimos e ofegantes, prontos para levar alguém que tenha o que fazer não sei quê em alguma parte. Museus, livrarias, cafés e gente se entupindo de comida a vapor, literal e metaforicamente falando, fast foods, borracharias, avenidas, padarias e lojas de vender tudo, contrariando os outros que têm o mesmo interesse e os pulmões cheios de poluição para poder anunciar seus produtos. Pescar peixes nos rios caudalosos e límpidos do pantanal, ah, isso não tem graça! Quero mesmo é mergulhar nas imundícies dos Tietês da vida, enlamear-me nos restos das fábricas, oficinas e indústrias dos Tamanduáteís e dos Pinheiros que não nascem à sua volta nem mesmo em época de natal à moda dos nórdicos industrializados e desenvolvidos, que sempre têm o que botar dentro das meias! Ah, cheiro de óleo queimado derramado nos canos dos postos de combustíveis fósseis para os futuros fósseis de pouca duração, geralmente cinco ou seis anos! Computadores, como eu queria entrar em todos eles! Como a um vírus. Rasgar-me todo em meio a chips, "placas-mãe", programas, janelas, diretórios, gerenciadores, ahrg, chutar seu cérebro e zombar de seu ‘pensamento’, que se danem os hardwares e os softwares, quero mesmo é correr atrás de um mouse até ele vire um rato! Sistemas operacionais alternativos em larga escala, como as alternativas dos ambulantes que vendem por dez o que se compraria por uns quinhentos dinheiros nas mãos de "originais", e quem me dirá que aqueles dos camelôs não são tão verdadeiros, reais e ‘originais’, que louvo e glorifico e, também cago para as patentes de quem quer que sejam bills ou sistemas de proteção ao mercado interno, barreiras alfandegárias, subsídios e incentivos fiscais aos estrangeiros, cogumelos da vida eterna! Percorrer deleitosamente a magnitude da última filha do telégrafo, na rapidez divina e espetacular da Rede, trocas de informações simultâneas tão criativas e maravilhosamente comprometidas com a avidez do acúmulo inexorável de riquezas! Embebedar-me todo das transmissões malignas dos satélites e sondas espaciais tupiniquins, frente à fome desmedida de quem nunca tem uma política que lhes seja destinada. Surpreender-me por inteiro com os virtualismos virulentos neoliberalizantes das bolsas de valores, pregões, compro tudo, ações despencando, corações enfartados, acionistas, especuladores, zombeteiros de plantão das desgraças alheias, canais a cabo, ah, tudo, como eu imploro o controle de tudo isto sobre mim! Como amo a invenção da figura do Bandeirante como exemplo a ser seguido pelos paulistas e seu culto! O último dos heróis inventados. Embasbacar-me frente ao uso de entorpecentes, assaltos, resgates, ah, como é belo um resgate! Os assassinatos nos jornais sofridamente assistidos pela gentalha, como amo essa mesma gentalha que ouve e assiste a programas de auditório, r-r-r-r, exposições, corpos semi-nus em plena avenida, pontes, tapumes de proteção a futuros moradores, de um e outro lado dos viadutos, mentes poluídas dos assaltantes de bancos, quer por via institucional através dos ‘empréstimos’ quer por vias criminosas através de pistolas e fuzis, sangue e tiroteios sem perdão! Chafurdar-me nos escombros, criar minha própria igreja e ensopar-me em todas as enchentes, ah, como são lindas, maravilhosas e ciciantes aquelas enchentes! Como é bom deitar-me nos escândalos financeiros dos figurões, jogatinas, falcatruas, desvios de dinheiro público, falsificação de uísques e balancetes finais das empresas visivelmente bem sucedidas, descaso público, ausência de políticas sociais, febens, carandirus e seus números, casa do governador, greves, sindicatos, pátios das montadoras, cinemas, escolas, canteiros de obras, como os amo a todos! Representai-vos o crescimento, a ideologia de que tudo vai bem, como são belas e difundidas as tais ideologias, quaisquer que sejam, são todas bem-vindas, a mim e aos humanos dos amontoados! Ah, como é bom ser um colono, poder enxergar o que a eles já lhes parece natural de tanto existir, querer viver eternamente um colono, caipira, caboclo, isso tudo faz parte de mim!
Ahh... hoje, hoje já nem sei quem sou mais, talvez um manipanço sobre a geladeira da instituição, um pobre caipira, que nem é mineiro nem pantaneiro, sem o queijo, o tereré, o tutu, o pacu assado, leite no curral, o guaraná ralado, goiabada cascão, araras, garças e tuiuiús, e a feijoada, então?! Estações divididas, ar puro e a beleza das águas do pantanal; hoje já era, amanhã já foi, assim o tempo não tem mais sentido, só para os patrões. E minha coragem perfeita de repetir igual façanha, a do Guimarães, já não encontra mais espaço em meu estoque de coisas a fazer! Bati em retirada de mim mesmo.

agosto de 2002 (para o concurso literário Mário de Andrade)

2 comentários:

Before my dark eyes... disse...

É...quanto oxigênio..o oposto da ausência de ar no afogamento. É bom vir à superfície, tenho que aprender o ofício anfíbio, e não é difícil quando deixo meu umbigóide para a realidade áspera (nem sempre)..Bons ventos o trazem e bons textos também! Volto a comentar com mais tempo e critérios de análise mais abstratos..rsrs..até +

Anônimo disse...

até onde me lembro, não era bem para o concurso literário, mas foi para ele aproveitado de outras situações e circunstâncias...
mas, melhor q assim seja.

nômade, de qualquer jeito e em qualquer tempo...

nômade, de qualquer jeito e em qualquer tempo...
"...eu sou assim, quem quiser gostar de mim, eu sou assim, meu mundo é hoje, não existe amanhã pra mim, eu sou assim, assim morrerei um dia, não levarei arrependimentos nem o peso da hipocrisia..." Paulinho da Viola