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01 setembro 2007


"Wóchito ama Katíucia"
A destruição de sítios arqueológicos e do patrimônio histórico-cultural dos povos*



A carência de estudos que enfoquem especificamente o que vem sendo denominado de “destruição” antrópica de sítios arqueológicos pode explicar sobremaneira a visão que comporta esse entendimento, na maioria das vezes, condenatório.
Os sítios submetidos às análises, tomadas como exemplo, pelos autores que corroboram com tal entendimento, carregam as feições, em sua maioria, de sítios rupestres (pinturas e gravuras), em que vêm sendo apontados como principais alvos dos destruidores.
Também tomados como “vândalos”, “pichadores” e adjetivos negativos correlatos, esses sujeitos são vistos como anti-sociais porque desrespeitadores das leis e normas sociais vigentes. Segundo consta das reclamações de pesquisadores e cidadãos amigos do patrimônio arqueológico que hospedam textos na Internet, a maior parte dos estragos é feita por turistas ou pessoas de índole maldosa e de interesse proposital pela depredação. Outra parte, menor, mas também significativa, dá conta dos sujeitos desconhecedores do potencial e da importância de tais sítios para a compreensão de nosso passado, bem como da legislação que os protege.
A destruição feita, na maioria das vezes, traz como característica principal a sobreposição de traços e signos aos já existentes e tomados como arqueológicos, sejam pinturas ou mesmo gravuras. No caso das pinturas são usados materiais encontrados nos arredores, como carvão, barro, hematita, frutas silvestres etc, e aqueles levados de casa, como giz, tinta sob pressão (spray), tintas aplicadas com pincéis, etc; no caso das gravuras, quando a superfície rochosa oferece certa fragilidade, os objetos empregados são aqueles encontrados também nos arredores, como pedaços de madeira, rochas pontiagudas ou cortantes, etc, e aqueles trazidos de outros ambientes, como canivetes, facões, facas, enfim, principalmente metálicos e industrializados.
Ocorre que esse assunto, apesar de presente nas rodas de pesquisadores e estudiosos, não recebeu a atenção merecida por esses próprios debatedores, com poucas exceções. A tônica das críticas é sempre a mesma, revelando não só o pouco conhecimento que temos da questão como também a tendência teórico-ideológica a que muitos se coadunam.
A destruição de sítios arqueológicos já era uma preocupação de pesquisadores nos anos anteriores a década de 1960, pelo que veio a manifestar-se em lei que visava a proteção e criminalizava os responsáveis por tais danos.
Embora não haja um estudo rigoroso e amplo para todo o País que nos ilustre a participação de turistas na destruição de sítios arqueológicos, ainda assim há uma insistência por parte de alguns pesquisadores e estudiosos em condená-los como os principais desfiguradores do patrimônio cultural, principalmente arqueológico.
Tarefa árdua também seria efetuar um levantamento nos relatórios de sítios estudados para identificar os tipos de danos registrados desde o início das pesquisas, passando pelo tempo em que elas decorreram aos dias posteriores a seu término.
Por outro lado não é menos fácil comprovar a destruição por outros agentes, mas pode-se especular baseando-se em comentários de técnicos, pesquisadores e leitura de relatórios de diagnóstico (EIA-RIMA), ocupados no estudo de sítios e áreas com impacto ambiental, ligados aos projetos de resgate obrigatório de parte dos componentes da biota e do patrimônio cultural como um todo.
Seguramente os maiores destruidores não só de sítios, mas de toda a área contextual deles, na maioria das vezes, são os empreendedores de grandes projetos que visam lucros; historicamente e em ordem decrescente de caráter destrutivo talvez pudéssemos eleger os latifundiários pecuaristas, produtores agrícolas de monocultura (soja, cana-de-açúcar, milho, algodão, etc.), reflorestadores para indústria de papel e celulose (notadamente, pinheiros e eucalíptos), empreiteiras construtoras de usinas hidrelétricas, de estradas e rodovias, os donos de canais e reservatórios de água para irrigação de parques de fruticultura, construtoras de linhas de transmissão de energia elétrica, os médios e pequenos produtores rurais, os arqueólogos e por fim, os turistas.
Em boa parte desses tipos a destruição é apenas parcial, como no caso dos pecuaristas e os produtores rurais de monocultura; conquanto haja significativos danos aos vestígios arqueológicos por força do desmatamento, aragem e gradeação do solo, nesses casos não se perde totalmente os dados, possibilitando por vezes boas possibilidades de recomposição da história daqueles indivíduos.
Já nos demais casos, mesmo que se considere a inundação como uma proteção como querem alguns, embora isso torne cada vez mais distante e dispendioso o conhecimento desses sítios através da arqueologia subaquática, a destruição é irreversível, principalmente ao que compete aos arqueólogos (embora alguns trabalhos de resgate visem uma pequena amostra arbitrária da totalidade dos vestígios); por fim, ao que concerne aos turistas, na maioria dos casos talvez não seja de todo irreversível, posto que hoje já existem técnicas, equipamentos e produtos que se não resgatam o estado anterior à depredação, ao menos a amenizam de alguma forma. Os “horrores” – segundo um sítio espanhol[1] para tratar das ações posteriores de turistas, vândalos e “curiosos” em geral – se manifestam em sua maioria reversíveis parcialmente.
Não que não devêssemos nos preocupar com a perda das informações ocasionadas por intervenções posteriores como as dos turistas, por exemplo, mas havemos de mostrar preocupação, no mínimo, de igual teor com os destruidores de sítios de fato, como explicitado anteriormente.
As compreensões da realidade e a formulação dos discursos são frutos das relações sociais e dos momentos históricos correlatos, de modo que, se analisarmos as proposições do que vem sendo chamado de “depredação/destruição” do patrimônio cultural, teremos tendências variadas a nos informarem minimamente seus suleadores[2] ideológicos.
As transformações do espaço provocadas por homens e mulheres num determinado tempo são consideradas grosso modo, através do estudo de seus vestígios pelos pesquisadores, sítios arqueológicos. Mas há uma tendência em buscar apenas como tal os vestígios mais distantes no tempo, talvez, como já disseram muitos historiadores, por ser mais difícil sua contestação.
Embora alguns arqueológos atuais critiquem os pares dos anos 30 da era Mussoliniana sobre a “onda desenterradora”[3] a que foi submetida Roma antiga neste período e também as decisões de remoção de parte das ruinas do Foro Imperiale a mando do próprio Mussolini, a fim de melhorar a vista de sua casa em sentido ao Colosseo, ainda assim são consideradas manifestações arqueológicas que nos ilustram as transformações físicas da cidade e da compreensão das pessoas sobre os espaços e as coisas.
O que é hoje objeto de investigação histórica e arqueológica e de apreciação turística, como no caso da Basílica S. Maria degli Angeli e dei Martiri, foi em outros tempos as Terme di Diocleziano. A destruição de parte e reaproveitamento de algumas estruturas foram autorizados e encomendados pelo Papa Pio IV e o projeto de transformação na Basílica atual levou a assinatura de Michelângelo como arquiteto. Partes do Coliseu também serviram aos interesses da Igreja Católica e às estruturas da Basílica de São Pedro.
Nesse mesmo sentido, a mudança de parte do traçado de algumas ruas bem como a desarticulação de porções dos aquedutos romanos também refletem, para além dos próprios contemporâneos às obras, para os historiadores e arqueólogos, por exemplo, as políticas de Governo e as necessidades e dificuldades enfrentadas para sanar problemas de trânsito e a conveniência das “reciclagens construtivas” daquele período.
As transformações que os membros de uma comunidade, com ou sem o aval dos demais, proporcionam aos espaços e às coisas ao longo do tempo deveriam compor aos olhares dos estudiosos o mosaico dos processos históricos e serem entendidos como tais. Até mesmo a reclamação de políticas que protejam os sítios rupestres bem como as condenações levadas a cabo tanto pelos denuncistas como pelos órgãos responsáveis, fazem parte e nos mostram uma preocupação de época. Esses comportamentos e seus eventuais estudos ou sua não-compreensão também compõem os processos históricos.
O estudo das “pichações” em prédios e muros de uma cidade coberta por cinza vulcânica, como no caso de Pompéia, Itália, foram revelados e são atualmente objeto de discussão arqueológica meritosa. Nesse mesmo sentido, as pichações de prédios e muros na cidade de Belo Horizonte, em Minas Gerais, também serviram de estudo arqueológico recentemente.
Boa parte das informações sobre o emprego de crianças nas fábricas e como se relacionavam pôde ser adquirida por meio de “pichações” nas paredes das dependências e nas peças produzidas. Um caso que ilustra essa afirmação é a quantidade de bolinhas de gude e os escritos em fragmentos de louça encontrados nas escavações de resgate arqueológico do que havia sido a Fábrica de Louças Santa Catarina, no bairro da Lapa, em São Paulo, do início do século XX.
No caso das manifestações derradeiras em sítios arqueológicos e monumentos históricos tomadas como vandalismo e depredação ilustram as vontades daqueles visitantes e expressam, por exemplo, sua indignação, sua revolta, seu desconhecimento das leis de proteção correlatas, enfim, seus comportamentos frente às coisas, aos outros e aos “iguais”.
A grosso modo, o entendimento de que tais manifestações não carregam cunho arqueológico e devem receber a condenação por parte de alguns pesquisadores do que vem a ser o registro como um documento, os conceitos referentes a este tipo de abordagem revelam o caráter purista da noção histórica e a carga ideológica positivista presente nas interpretações da realidade material.
Em geral, as orientações materialistas dos processos históricos carregariam peso de interesse para as manifestações derradeiras igual ao dispensado aos registros “puros” pelos positivistas. Ao contrário da corrente majoritária que condena tais manifestações e as vê passíveis de serem criminalizadas mesmo que os “sujeitos históricos” não venham a saber sobre a legislação, os estudiosos materialistas debruçam-se sobre os significados dessas manifestações como fruto das relações sociais atuais e daí tiram mais componentes para o entendimento de todo registro arqueológico como processos sucessórios.
Conquanto não haja tais estudos capazes de nos dar um diagnóstico da situação de conservação do patrimônio cultural como um todo, como já antecipado, a condenação parece carregar um preconceito de classe subliminar em que os destruidores são apontados como pessoas “sem cultura”, “analfabetas”, de “poucos estudos” ou simplesmente como “vagabundos”, vândalos, enfim, subalternizados.
Mas uma pequena observação pelos sítios e blogs na Internet em que falam dessas questões já se averigua que não se trata de desinformação ou analfabetismo. Os maiores responsáveis pela compra de material arqueológico e paleontológico e, conseqüentemente, os incentivadores da prática de desfiguração dos sítios – os colecionadores – são exatamente o oposto das acusações, pois são pessoas cultas, das elites financeira e intelectual. Outro ponto a considerar pode ser feito através da interpretação dessas manifestações, em que se pode observar, no caso de sítios e monumentos históricos romanos, por exemplo, grafismos que tratam de situações majoritariamente públicas e também particulares, dessa maneira perfeitamente compreensíveis e factíveis de datação.
Berlusconi schiavo di Bush” ilustra uma coluna da ponte Giuseppe Garibaldi sobre o rio Tevere, no centro antigo de Roma. Nos informa uma reação de cidadãos à submissão do então primeiro ministro da Itália ao governo imperialista de George W. Bush, atual presidente dos EUA. Na mureta de proteção que margeia o mesmo Rio, a pouca distância dali, nota-se a inscrição “Pace e figa”. Tanto as manifestações políticas (pedido de paz) como as ligadas à sexualidade (gíria alusiva ao órgão genital feminino) fazem parte do constructo social. (imagem da capa)







No Brasil, por ocasião das revoltas estudantis à opressão e às medidas autoritárias dos Governos militares de 1964 a 1984, muros e prédios públicos serviram de suporte parietal a manifestações públicas que contestavam o fascismo praticado pelo Estado e pediam as liberdades democráticas.


Os estudos de vários sítios rupestres dão conta de interpretações sobre rituais de sexo em que aparecem figuras humanas, falos e vulvas, cenas de caça, tipos de animais, símbolos, etc. Um motivo muito presente nas manifestações recentes em sítios arqueológicos têm muita correspondência com aquelas passadas, em que

as alusões aos órgãos genitais masculinos e femininos ou sua neces-sidade de deixar marcada ali sua passagem reproduzem, em boa medida a vontade e o pensamento daqueles ocupantes, diria, um pouco menos demorados ali.

Revelam um pouco da mentalidade dessas pessoas, o que para os arqueológos e historiadores materialistas acaba sendo mais uma fonte de informação.
O que parece estar acontecendo, são tentativas de exclusão daquelas camadas arqueológicas que não representam parte do registro “puro”. As últimas manifestações são “jogadas fora” por poluirem o pacote.
Por exemplo, as primeiras pinturas de um painel remontam a caçadores coletores de 4,5 mil anos atrás. Posteriormente o mesmo sítio é ocupado por ceramistas que deixam ali marcas de gordura, riscos na rocha sobre as pinturas decorrentes de escoras de madeira que podemos datar como sendo de 2 mil a 500 anos antes do presente. Colonizadores portugueses aproveitam o local para armar seus acampamentos de captura de escravizados fugidos e pesquisa mineralógica (ouro) no século XVIII do calendário católico (300 anos atrás) e lá deixam também seus registros, como pinturas, fogueiras, restos alimentares, etc. Num painel mais plano e amplo se vê ali uma inscrição: “Expedição Matto Grosso-Amazonas 1907”, deixada pela equipe de Marechal Rondon. “José Góes 1963 estive aqui” ilustra a permanência temporária de um garimpeiro que remexe o pacote arqueológico em busca das lendárias “botijas de ouro” que porventura poderiam estar ali enterradas. Hoje se pode ver nos painéis, além de todas essas manifestações uma pintura que podemos decodificar como "Wóchito ama Katíucia", além evidentemente, de desenhos sugerindo ânus, pênis e vaginas, às vezes conjugados.
Talvez pudéssemos inferir que o fato de haverem já manifestações expressas nos painéis, as posteriores poderão ter sido sugeridas por aquelas.
Desse modo, cabe-nos uma análise mais cuidadosa dos tratos despendidos tanto nas abordagens arqueológicas como nas de proteção dos sítios e do patrimônio histórico-cultural, de maneira que incorporemos ao nosso estudo tais manifestações e as estudemos como constitutivas do processo histórico a recompor.

(3)

Pinturas rupestres dañadas por excursionistas.( Cueva de Atlanterra )
(atalhos para a página)
Referências
Imagens:
Capa-frontispício:

Serra da Capivara (1) e “Pace e Figa” – Para-peito do Rio Tevere, Roma, 2006. JHR


(1) Serra da Capivara - home.wxs.nl/~bange006/natparcs.html
(2) Manifesto estudantil de 1968 http://www.cliohistoria.hpg.ig.com.br/bco_imagens/ditadura/023abaixo_rj_68.htm
(3) Imagens de arte “danificada” – A “Galería de los horrores” www.elestrecho.com/arte-sur/

notas:

* texto apresentado em outubro de 2006 como requisito de avaliação da disciplina ARQ5018-1 Comportamentos Simbólicos dos Homens Pré-Históricos, ministrada pelos professores Águeda e Denis Vialou no Museu de Arqueologia e Etnologia - Universidade de São Paulo

[1] www.elestrecho.com/arte-sur/
[2] Termo em substituição ao já difundido “norteador”, como inversão ideológica ilustrativa da não-aceitação do termo subjugador presente nos discursos imperialistas, em sua maioria, inconscientes e reprodutivistas.
[3]I Romani e l’arte. Tra collezionismo, amore per il lusso e ‘cattiva coscienza’. Roma e il mondo greco. La ritrattistica e il rilievo storico.” Scuola d’Italiano Roma. Aula de 18 de outubro de 2006.


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